Versões estendidas, remixadas e vitaminadas de clássicos da música brasileira como você nunca ouviu…e viu, pelas mãos de DJ Meme.
Há dois tipos de discos de remixes. Aqueles que assassinam as músicas originais e aqueles que as engrandecem. Estamos diante de um caso à parte; “DJ Meme apresenta: Clássicos Reboot vol 1″, não apenas engrandece a importância histórica de cada uma das 10 faixas clássicas de música brasileira escolhidas a dedo pelo autor do álbum, mas, acima disso, as devolve para a audiência de hoje tomando todo o cuidado em manter suas almas intactas.
Como o próprio Memê adverte, seu disco não foi pensado exclusivamente para pistas de dança. Trata-se de um redesign digitalizado de músicas que foram criadas há mais de 30 anos. Verdade que algumas já nasceram para fazer dançar, como “A Noite Vai Chegar”, de Lady Zu, um hino da disco music nacional, ou ainda “Lança Perfume”, de Rita Lee e Roberto de Carvalho, balanço que botava gente para requebrar nas boates no início dos anos 80. Já outras, como “Cheiro de Amor”, de Maria Bethânia, “Só Você”, de Vinicius Cantuária, e “Quero um Baby Seu”, de Caetano Veloso, pouco ou nada têm a ver com uma pista. Como um artesão sonoro, o principal mérito de Memê neste trabalho foi ter resgatado músicas preciosas para serem ouvidas hoje em dia.
“DJ Meme apresenta: Clássicos Reboot vol 1” começou a ser concebido durante a pandemia, quando, assim como a imensa maioria dos DJs do planeta, Memê estacionou seu case em casa e passou a ter algo raro para essa categoria de trabalhadores que vive na estrada ou virando noites: tempo livre. Sentou-se em frente do computador e começou a revirar seu próprio acervo de fitas DAT, um tipo de mídia digital que era usada para armazenar sessões de gravação de forma mais compacta e prática do que as fitas de rolo.
E o que faziam essas DATs enfeitando o estúdio de Memê? Bem, estamos falando de Marcello Mansur, um dos criadores do ofício remixer no Brasil, DJ da primeira leva de criadores de versões exclusivas construídas a base da gilete, fita de emenda (a tal splicing tape) e muita criatividade. Ele estreou nesse métier em 1985, aos 20 anos de idade, criando um remix para “No Mundo da Lua”, do Biquini Cavadão.
A música bombou e tudo mudou na carreira dele. Vieram encomendas para remixar “À Francesa”, de Marina Lima, e “Música Urbana”, do Capital Urbana, duas versões que viraram queridinhas nas rádios e consolidaram o nome de Memê como remixer. A partir daí ele virou o DJ preferido de nomes da música pop, como Lulu Santos (com quem lançou o álbum “Eu & Memê, Memê & Eu”, em 1995), Gabriel o Pensador e nomes gringos como Shakira, Gloria Estefan, David Morales, Frankie Knuckles e Dmitri From Paris, entre outros.
Voltemos para “DJ Meme apresenta: Clássicos Reboot vol 1″. Como se deu a escolha das faixas, já que o álbum traz medalhões que nem sempre circulam entre discos de DJs? O próprio Memê é quem conta.
“As músicas foram escolhidas como um DJ escolheria a próxima faixa para tocar na pista. Tem duas pessoas com quem, durante o processo de escolha, eu bati bola, que foram os DJs Zé Pedro e o Marky, que entendem demais de música brasileira e foram uma espécie de embaixadores deste trabalho“, diz.
A primeira música concluída, das dez contidas no álbum, foi “Fullgás”, de Marina Lima. “Quando começou a pandemia, a gente não tinha pra onde ir, não tinha onde tocar, não tinha o que fazer, né? A gente começou a fazer lives. Um dia fui pro estúdio e resolvi pegar o meu caixote de DATs. Quando eu peguei a fita da Marina, descobri que tinha todos os canais. Aí joguei no computador e comecei a brincar. Quando eu vi, a música começou a tomar forma. Comecei a fazer aquilo de brincadeira, mas levando a sério. Mandei pro Zé Pedro e pro Marky e eles piraram. O Marky fez uma live só pra tocar a música. Todo mundo ficou pedindo a música“, lembra.
Daí surgiu a ideia de, por que não, retrabalhar músicas incríveis que saíram do repertório das gerações mais novas não por falta de qualidade ou genialidade, mas por soarem de outra época.
“Liguei pro Paulo Lima, que é o presidente da gravadora [Universal], e falei da minha ideia. Mandei o remix da Marina e ele adorou: ‘Vamos fazer’“, conta. Memê então pediu carta branca para mexer no acervo da gravadora, o que foi concedido.
“Eles começaram a abrir arquivos para mim e converter para digital“, diz. O passo seguinte foi conseguir as autorizações com os artistas. “A minha sorte é que eu comecei a fazer isso num período onde estava tudo meio parado, e essas autorizações foram saindo mais facilmente. O mais bacana é que todos os artistas, incluindo Bethânia e Caetano, autorizaram desde o início que eu botasse a mão nas fitas pra mexer e, depois, todos eles autorizaram o remix feito“, revela.
“Não é um disco para pista. É um álbum de remixes, no qual mostro o arranjo original, mostrando a diversidade daquela música que já é conhecida há mais de 30 anos“, detalha Memê.
VINIL E DOCUMENTÁRIO À VISTA
Com “DJ Meme apresenta: Clássicos Reboot” já na praça, o próximo passo será o lançamento de uma série de vídeos documentais com entrevistas com os artistas e seus produtores, conduzidas pelo próprio Meme e por Charles Gavin.
“Cada capítulo vai ser uma música. Já estão confirmados episódios com Ed Motta, Paralamas, Dalto, Lady Zu. Vamos contar as histórias por trás de cada música contida no álbum“, conta Memê.
Outra novidade é que o álbum está nos planos da gravadora para ser lançado em vinil, com toda pompa que merece: no formato caixa, para colecionadores. Estamos ansiosos para botar as mãos nessas bolachas que já nascerão clássicas.
POR DENTRO DE UM REMIX
O disco reconta uma parte importante da música brasileira, com artistas icônicos de várias épocas e estilos musicais. Começa com “Daqui pro Méier”, do Ed Motta, resgata Pessoa, uma joia rara de Dalto cuja versão de Memê revela o quanto a faixa sempre foi um electro à la “Together in Electric Dreams” (de Giorgio Moroder e Phil Oakey), traz Caetano Veloso para uma pista de disco music, coloca um brilho sensual em “Cheiro de Amor”, de Maria Bethânia, joga “Óculos”, dos Paralamas, dos anos 80 para uma sonoridade atual.
É interessante abrirmos um parêntese para falar da gênese da palavra remix, que nos primórdios significava pura e simplesmente mixar (misturar as diferentes faixas de som) novamente (re-mixar). Quando os primeiros produtores começaram a criar novas versões em cima de trechos de músicas previamente lançadas, convencionou-se a chamar essa técnica de remix. Existem, porém, outras formas de falar dessas versões, como rework, re-edit e reboot, que dá nome ao álbum. Mas e aí, como nasce um remix das mãos do Meme?
“Esses remixes são bem específicos, completamente diferentes do que eu venho fazendo há mais de 30 anos. O remix normalmente vem sob encomenda. Peço sempre as partes originais. Preciso daquelas guitarras separadas como foram gravadas sem processamento. Por quê? Porque eu vou justamente remixar. Já este álbum de remixes nada mais é do que o mesmo processo que eu fazia quando comecei aos 20 anos de idade. Não tinha como botar eletrônica no meio, não tinha como fazer versão de house. Isso veio um pouquinho depois. Lá no início você botava a fita na máquina e usava os elementos originais. Hoje a gente normalmente quer dar a cara da gente. Aí bota um beat eletrônico, uma linha de baixo. Nesse álbum os elementos que foram adicionados são muito sutis, para não ferir o arranjo original. Não interferir harmonicamente, com notas musicais. Por exemplo, o Dalto e o ‘Lindo Lago do Amor’, se você comparar um com o outro, vai ouvir percussões que não têm nos originais, mas são coisas que acompanham o beat original. Mexi na estrutura utilizando o que já tinha ali dentro“, explica.
Entre as surpresas encontradas nas fitas, estava uma trecho de Lady Zu cantando em inglês. “Tem coisas que você não ouve na original porque elas não foram utilizadas. Por exemplo, a Lady eu encontrei uma voz em inglês, aí eu peguei um trecho da gravação e botei no meio“, conta. “Mas acho que a minha maior surpresa foi ouvir o Dalto. A música é toda eletrônica, não tem uma guitarra, não tem um baixo. É tudo um homem só tocando, o Lauro Salazar. Ele fez o arranjo todo eletrônico a pedido do Mayrton Bahia, que foi o produtor da faixa. Na época eles não tinham tecnologia para soar tão eletrônicos no Brasil. Porque quando você ouve a versão remix até o Dalto começar a cantar parece que estamos ouvindo Human League“, compara. Já a faixa que ficou mais diferente da versão da original é “Quero Um Baby Seu”, de Caetano. “Nessa versão, avancei meus limites impostos por mim mesmo. Mudei os beats e adicionei cordas“, conta Memê.
Do alto dos seus 37 anos de experiência como remixer, Memê dá dicas valiosas para quem quiser mexer em músicas alheias. “Se você pegar a voz e conseguir fazer soar como se tivesse sido gravado daquele jeito de forma natural, vai ser lindo. Também é preciso tomar cuidado com essa coisa de acelerar ou atrasar a velocidade, pode parecer fake, ansioso“, ensina. “A menos que a sua intenção seja parecer esquisito. Arte não tem limite, não tem certo, nem errado“, finaliza.
Escute agora ‘DJ Memê apresenta: Clássicos Reboot vol 1‘, disponível nas plataformas digitais: