Ela começou tocando em Recife, até se transformar numa das pioneiras em levar a arte drag para as picapes. Leia nosso papo com Las Bibas From Vizcaya.
Natural de Recife, Las Bibas from Vizcaya começou sua carreira ainda nos 80, atuando em clubs voltados a um público diferente daquele que a consagraria. Drag queen, DJ e produtora musical, ela carrega em suas músicas, a militância.
Representando a letra Q da sigla LGBTQIA+, confira agora a nossa entrevista com Las Bibas From Vizcaya para a #PrideWeek 2020 do Beat for Beat.
—
Beat for Beat – Olá Las Bibas, muito obrigado por conversar com a gente nessa semana tão importante para nós. Para começar, nos diga: como é ser uma DJ drag queen, na cena eletrônica nacional? Você ainda sofre muito preconceito ou resistência com relação a contratantes dentro e fora do mundo LGBTQIA+?
Las Bibas From Vizcaya – Dentro do mundo LGBTQI+ não mais, mas ate uns 3-4 anos atrás, alguns contratantes me olhavam atravessado, talvez por não pesquisarem sobre a minha trajetória ou o meu trabalho. Eu me aventuro em diversas aéreas: vídeo, podcast, na arte drag. Acredito que eles achavam que eu faria de tudo, menos tocar… bobinhos! (risos).
Fora do Universo LGBTQI+, quando eu tocava (hoje não mais), os contratantes eram mais antenados. Lembro de uma vez que toquei no D-EDGE e o club fez uma mini matéria minha, na página deles, falando de mim e o meu trabalho como DJ. Achei tão incrível que printei e guardo como um quadro de parede (risos).
Você é uma das pioneiras em levar a arte drag para as picapes, além de ser uma grande produtora musical. Você tem mais de 30 anos de estrada, já que começou em 1984. Como foi o começo da sua carreira, com relação a sua orientação sexual? Tem alguma coisa que você percebe que não mudou, mesmo depois de tantos anos?
Las Bibas – Eu comecei em clubs mais direcionadas ao público hétero, mas já estava fora do meu armário, porém de maneira “discreta e no sigilo” (termo utilizado em apps de relacionamento). Eu não imagina que um dia, tocaria montado em drag e cá estou hoje.
Mesmo sendo gay, nunca tive problemas em casas/festas “ht”, mas resolvi migrar para os eventos LGBTQIA+ no início dos anos 90, ainda lá em Recife, minha cidade natal, quando a coisa começou a tomar mais forma. Pra vocês terem uma ideia, nos 80, em Recife, só existia praticamente 1 club LGBT e alguns bares, foi nos anos 90 que começaram a surgir vários clubs.
Mudou muita coisa de lá pra cá, mas algo que o público LGBT ainda tem, e que difere do público hétero, é fidelidade com um club, por exemplo. Nossa comunidade chegava a passar 5-10 anos na cena noturna e mesmo que hoje, gerações mudam a cada 3-2 anos, manter-se fiel a um local não mudou. Durante um mesmo ano, por exemplo, você consegue ver quase os mesmos rosto na pista, figurinhas carimbas e isso bom, pois você cria laços com o público e faz até amigos.
A comunidade LGBTQIA+ adotou o tribal como um dos seus gêneros preferidos e no Brasil, ele ganhou novas formas. Uma sonoridade diferente. Como é ser referencia na produção musical de um estilo que ganhou a cara brasileira e a que você atribui esse grande sucesso entre a nossa comunidade?
Las Bibas – A comunidade LGBTQIA+ sempre foi um gueto nos 70, 80 e 90, e sendo um gueto, a sonoridade sempre foi mais fechada e peculiar. Sendo assim esse som pouco mudou, pouco evoluiu e apenas se moldou a uma sonoridade atual, unido-se a outros estilos que a nossa comunidade consome, como o groove do funk, as percussões do samba e a energia da EDM. Até hoje, a música que consumimos segue essa linha, baseada em elementos clássicos e sobretudo nas divas e nos seus vocais.
Além do tribal, você usa elementos de outros gêneros, como o house, que é genuinamente LGBT. Como você vê a questão de um gênero que nasceu preto, gay, tornar-se algo das massas e perder um pouco da militância em cima da qual ele foi criado? Como você vê a importância de transmitir uma mensagem de liberdade de expressão através da música?
Las Bibas – Dentro da cena, meu som é um dos mais “diferentões”, pois eu tenho um compromisso social com a música. Eu gosto de levar mensagens subliminares, de resgatar o passado, repagina-lo e trazê-lo para as novas gerações. Talvez esta seja a minha militância: através da música.
Se tive a sorte de passear por diversas casas, gostar e tocar diversos gêneros musicais, eu me acho na obrigação de trazer essa diversidade musical para a minha pista, mas com as limitações, para não fugir do estilo preferido da nossa comunidade.
Hoje você é figurinha constante em diversas festas do Brasil e até do mundo. O que de mais diferente, culturalmente falando, você encontra nas diversas festas por onde vai? O que te surpreende e te incomoda mais nos hábitos regionais de cada lugar que você passa?
Las Bibas – A internet unificou o mundo. Hoje, o que se toca em Nova York, também toca no club mais longínquo de qualquer interior do brasil. O que me incomoda é que o som ficou mais “pop”, mais comercial e perdemos um pouco o espaço de podermos mostrar algo novo ou diferente, mesmo que seja um hit do passado reciclado.
O público tem sua parcela de culpa. basta vermos o charts das plataformas de streaming do Brasil, para termos uma noção do nível musical do país, mas os maiores culpados são os próprios DJs. A profissão ficou de fácil acesso a todos e hoje, temos muitos “influencers”, blogueiros, ou pessoas que apenas tem uma rede social bombada, mas que não possuem nenhuma bagagem musical e estão ocupando o lugar de verdadeiros profissionais.
Vários DJs incríveis do passado, hoje mal tocam ou são convidados, pois não se encaixam mais no perfil do “DJ superstar” ou não entram na sonoridade atual. Será que eles ficaram datados? Ou será que a musica de hoje é tão descartável, que fez esse desserviço a comunidade?
Você possui uma vasta carreira na produção musical. Seu último single, ‘The Art of Sampler 5: Octavia St Laurent’, ganhou as plataformas digitais recentemente. Conta pra gente a história por trás da track e seu processo criativo na construção dela.
Las Bibas – Estamos no mês do orgulho e eu queria lançar algo muito #pride neste mês. Esse meu projeto, chamado “The Art of Sampler“, começou como uma brincadeira-desafio, onde eu sampleio tudo da música (de músicas famosas inclusive) e tento recriar em algo novo. Passei a gostar tanto, que já vou pro quinto lançamento.
Octavia St Laurent foi uma ativista transexual, drag, negra, latina da cidade de Nova Iorque e educadora sobre questões do HIV/AIDS. Ela está no famoso e indispensável documentário “Paris is Burning” e ainda atuou na linha de frente pela visibilidade da comunidade LGBTQIA+, ou seja, a gata foi um ícone underground pouco reverenciada e conhecida dessa nova geração. Ela tem frases icônicas que eu usei na música, como por exemplo: “Gays têm direitos, lésbicas têm direitos, homens têm direitos, mulheres têm direitos, até animais têm direitos. Quantos de nós temos que morrer, antes que a comunidade reconheça que não somos dispensáveis?”
Essa track é um tributo a ela e uma militância sonora minha. Se algumas pessoas ouvirem, pesquisarem melhor sobre Octavia e descobrirem quem ela foi, minha missão foi bem sucedida.
E pra finalizar, que conselho você pode dar para seus fãs que almejam uma carreira musical?
Las Bibas – Você tem que amar a música, casar com ela, se dedicar e sobretudo, estudar, pesquisar o passado, para entender como chegamos nesse presente-futuro atual. Acho que isso serve pra qualquer profissão, né?