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Editorial

Etcetera, Pedro Gariani e a força da diversidade na WareHOUSE

Ela é uma drag não-binária e ele, um gay cis. Etcetera e Pedro Gariani formam a dupla de DJs residentes da WareHOUSE e hoje, conversam com a gente.

Pedro Gariani e Etcetera | Foto: FALZER – @philipfalzer

Resgatar a história da house music não é tarefa fácil, mas é isso que o coletivo WareHOUSE vem fazendo em cada uma de suas edições. Seus DJs residentes, Etcetera e Pedro Gariani, uma drag queen e um gay cis, são o retrato perfeito da diversidade e ambos têm muito orgulho disso.

Convidados da nossa #PrideWeek 2020, a dupla conversou com a gente, sobre as dificuldades na cena eletrônica, preconceito, aceitação e claro, house music. Confira nossa entrevista com Etcetera e Pedro Gariani, da WareHOUSE.

Beat for Beat – Oi meninxs, tudo bem? Obrigado por conversarem com a gente nessa semana tão especial. Pra começar, contem pra gente: como é serem artistas LGBTQIA+, dentro da cena eletrônica nacional? Já sofreram preconceito e/ou entraram dificuldades na hora de fechar uma gig?

Etcetera – Obrigada vocês pelo convite delicioso pra esse papo. Eu comecei tocando profissionalmente há 7 anos, quando ainda tocava Indie, mas logo migrei pra cena eletrônica, onde estou há 5 anos. Eu sempre trabalhei com festas voltadas ao publico LGBTQIA+, mas foi apenas nos últimos 2 anos que me libertei dos meus bloqueios e dei vida a Etcetera. A drag surgiu após eu ter conseguido um certo reconhecimento

Etcetera me abriu diversas novas portas. Hoje vivemos tempos muito bons para a arte drag. De uns anos para cá, deixamos de ser marginalizadas e finalmente somos vistas como as estrelas que realmente somos. Não que ainda não tenha muito o que evoluir em questão de respeito, mas é algo que vem caminhando a acontecer. É engraçado sentir e perceber a reação de surpresa das pessoas ao presenciarem uma drag tocando um house de respeito (risos).

Infelizmente já senti sim, alguma dificuldade em ter a atenção de algumas festas grandes e acredito que todo artista LGBTQIA+ já tenha passado por algo. Também já tive situações desagradáveis com público, diversas vezes, antes e depois do drag. Ofensas enquanto estou tocando, papos constrangedores com algum contratante mais “ignorante” ou até mesmo no meio da pista, mas eu sempre lidei muito bem com isso.

Pedro Gariani – Oi pessoal, obrigado pelo convite e por colocar este assunto, que é tão importante, em pauta. Eu amo ser um ser um artista LGBTQIA+ e tenho muito orgulho disso. Espero conseguir aumentar cada vez mais meu alcance para poder levar uma mensagem de amor e respeito às pessoas.

O mercado em geral é muito pautado por relacionamento e networking. Eu toco há aproximadamente 3 anos e foi um processo natural ir tocando nas festas e clubs de pessoas que estão próximas ao meu círculo de relacionamentos e estes eventos, em sua maioria, foram voltadas ao público LGBTQIA+, então nunca tive problemas relacionados a preconceito até então.

Mas ao mesmo tempo, à medida que eu olho para os meus objetivos futuros, sempre me questiono se produtores e contratantes de festas fora da cena LGBTQIA+ vão olhar para mim com os mesmos olhos que olham para outros artistas que não falam abertamente sobre diversidade.

Etcetera

Vocês fazem parte hoje, de uma crew que luta pela diversidade. Etcetera, como surgiu o convite pra fazer parte da WareHOUSE? E Pedro, como foi criar esse projeto? Qual a sensação em fazer parte de uma crew que valoriza a pessoa, independente do que ela é?

Etcetera– A WareHOUSE chegou na minha vida de surpresa e ganhou espaço cativo nas prioridades desde cedo. Pouco antes da segunda edição, minha amiga drag, Jade Odara, hostess da festa, indicou meu trabalho para o Pedro. Fui conhecer a festa, os organizadores e acabamos descobrindo muitos pontos em comum. Comentei da forte vontade que eu tinha, de fazer algo em prol da minha comunidade, de dividir meus privilégios, o que vai de encontro com o a filosofia da WareHOUSE

Quando o convite veio, não foi só pra ser DJ residente da festa, mas uma das pessoas responsáveis por fazer esse projeto existir. Logo na sequência, eu e o Pedro iniciamos nosso projeto em dupla, WareHOUSE DJ’s. Nós temos uma afinidade musical muito boa.

É uma honra imensa conseguir fazer o projeto acontecer e conquistar seu espaço. Sempre quis fazer uma festa onde realmente fosse respeitada a historia da house music, reviver as pistas onde todes se sentiam livres para ser quem quiser ser e curtir a noite toda sem medo de julgamentos.

Pedro – A WareHOUSE é um sonho que se tornou realidade. Um projeto concebido por mim e pelo Antônio, meu namorado, e que desde o princípio nasceu com a ideia de oferecermos um espaço totalmente democrático para o nosso público, onde todos pudessem ir e ser exatamente quem são ou quem quisessem ser naquela noite. Também sempre foi imperativo que o lineup e cast de artistas fosse marcado pela diversidade e representatividade, além de termos uma equipe (da produção à segurança, à limpeza, etc) que fosse majoritariamente composta por LGBTs, sendo pelo menos 50% de pessoas trans.

A realidade é que, quando olhamos para a história da House Music, vemos que ela surgiu dentro da cena underground, nas mãos de pretos, gays, latinos… e hoje, olhando para o cenário global e até mesmo nacional, onde estão essas pessoas em posição de destaque? Claro que temos alguns nomes, mas o mercado em si se apropriou de algo que surgiu na mão dessas pessoas e hoje as discrimina e não dá oportunidade.

Neste sentido, queremos com a WareHOUSE, resgatar estes valores de liberdade, inclusão e diversidade que sempre estiveram no DNA da House Music. Queremos dar suporte à nossa comunidade, além de dar destaque a essas pessoas. Temos uma preocupação muito grande em ter representatividade em todos os setores dos nossos eventos, da equipe de limpeza e seguranças aos DJs e Performers.

Também dentro dos nossos objetivos está levar a música e a profissionalização na área para quem não tem acesso. Por isso criamos o projeto WareHOUSE DJs, que visa oferecer formação de DJ a LGBTs de baixa renda. Devido ao coronavírus acabamos não conseguindo colocar de pé ainda, mas assim que tudo se resolver daremos continuidade.

Etcetera e Pedro Gariani

Etcetera, você é uma pessoa dentro da letra Q. Ser uma drag queen DJ, não-binária, fora do tradicional pop/tribal, já foi um problema na sua carreira profissional?

Etcetera – Infelizmente sim. Já houveram produtores de festa underground, que depois de receberem meu material, disseram que não imaginavam que eu era do house, que tinham certeza que eu tocava pop. As pessoas automaticamente associam a arte drag ao gênero pop ou tribal, o que atrapalhou sim um pouco para que eu conseguisse meu espaço e um certo respeito na cena eletrônica underground, mas vem acontecendo, graças a Deus. Eu amo ser uma das drags que vem quebrando esse padrão.

Pedro, você representa a letra G da sigla. Ser homem cis, torna sua vida como DJ mais fácil? Você acha que há mais oportunidades se comparada a outras letras da sigla?

Pedro – Em uma visão mais macro, acredito que o ser DJ LGBTQIA+ fora da nossa cena não é muito fácil. Como eu disse no começo, se trata mais dos relacionamentos que você constrói e quem você acessa. Falando pela minha carreira, eu ainda não tive nenhuma oportunidade para mostrar o meu trabalho fora da minha “bolha”, por exemplo.

Agora, quando olhamos para dentro da cena LGBTQIA+, vemos muito mais artistas gays cis do que do resto da sigla. Infelizmente não temos uma comunidade unida, ainda existe muito preconceito dos próprios gays, por exemplo, com o resto da comunidade e isso com certeza se reflete muito em como e para quem as oportunidades de fato chegam.

Pedro Gariani

A House Music é um dos pilares da música eletrônica e que foi criada em meio a comunidade preta e LGBT. Quando que vocês decidiram se dedicar a esse gênero tão clássico? Como foi é representar um gênero musical tão representativo para nossa causa?

Etcetera – Eu sou apaixonado por house desde muito novo, por influências do meu irmão que sempre ouviu bastante, mas eu acabei começando a carreira musical no indie pop. Depois de assistir alguns documentários, entre eles o Pump Up The Volume e ler bastante sobre a historia da House e Disco Music, eu me apaixonei ainda mais. O ritmo já contagia e conquista por si só e o quanto mais eu aprendia sobre, mais eu tinha certeza que era dessa história que eu queria fazer parte e ajudar a continuar escrevendo.

Eu fico completamente honrada em poder hoje ser alguém que representa essa história e eu quero poder ir muito mais além. Sonho em poder levar a voz da minha comunidade ao topo.

Pedro – Eu tive um processo de me descobrir durante estes anos, acho que o amadurecimento também foi me permitindo gostar de coisas novas. Eu sou muito eclético e gosto de muitos gêneros e subgêneros, mas a minha história com a criação da WareHOUSE me inspirou muito a me dedicar mais à House.

Eu fico muito orgulhoso de ver todas essas histórias lindas por trás da House Music, acho que decidi representar algo que eu realmente acredito e quero fazer a diferença.

É perceptível que hoje, o público LGBT esteja migrando, cada vez mais, para gêneros mais underground da música eletrônica, saindo do POP e Tribal tão característicos. Como vocês enxergam essa mudança de estilos, ambientes e o que achou que motivou isso?

Etcetera – A Historia da House music ganhou espaço na mídia. As pessoas passaram a conhecer mais as festas undergrounds e o burburinho foi acontecendo. Um grupo ia, se apaixonava e contava para outros grupos que também migraram e rapidamente, a cena foi ganhando visibilidade e cada dia mais publico. O ser humano é mutável, influenciável e a mídia é completamente responsável pelo que a massa consome.

Pedro – Essa movimentação foi um grande reflexo da popularização das festas fora de Clubs. Carlos Capslock, Mamba Negra, ODD, GopTun, Selvagem e muitas outras, foram grandes responsáveis por enriquecer a cena paulistana e dar opções mais diversas para um público que antes estava restrito a poucos clubs. Esse processo colaborou muito também para a diversificação dos ambientes, eu enxergo muita pluralidade no público destas festas.

Eu acho tudo isso incrível. Consegui acompanhar a mudança de comportamento dos meus amigos durante todo esse processo e fico muito feliz de ver tanta gente se abrindo para coisas novas!

Pedro na Tokka

O 2º semestre está começando e mesmo que o cenário ainda seja muito incerto, quais os planos de vocês para o restante do ano? O que buscam desenvolver em suas carreiras profissionais?

Etcetera – 2020 VOOU MENINE, SOCORRO! Esse ano esta sendo muito desafiador, estamos todes tendo que nos reinventar, buscar formas de mantermos nosso trabalho e sustentos em meio a tudo isso. Eu venho estudando formas de levar minha arte cada vez mais longe, no mundo virtual. Dei incio ao meu canal no Youtube e pretendo subir muito conteúdo musical e informativo por lá. Estou aproveitando o tempo para estudar e aperfeiçoar mais meu trabalho como DJ e performer.

Ah… Tem um projetinho no forno fora da música, mas é novidade pra um papo futuro. (risos)

Pedro – Eu estou com expectativas altas para o período pós pandemia. No momento, estou me dedicando à criação do meu primeiro EP. Quando tudo isso passar, eu quero deixar as pessoas felizes na pista, então estou dedicando o meu tempo a produzir coisas que possam deixar as pessoas assim.

Junto com este EP virão outras coisas legais, como o show visual que estou preparando e que deve ser lançado na WareHOUSE, assim que pudermos retomar a festa.

Pra finalizar, o que acham que falta, tanto para o público quanto para contratantes, que ainda são intolerantes, entenderem que a orientação sexual é um mero detalhe e que o que importa, é o talento do artista? 

Etcetera – Estamos vivendo momentos onde é extremamente necessário olhar para dentro. Todes temos a liberdade de sermos quem e como quisermos ser. Somos responsáveis por nossas vidas, histórias e não é a orientação sexual ou gênero que vai definir a capacidade das pessoas. Já passou da hora de entender a todes como seres humanos. Do lado de dentro, todo mundo é idêntico, todo mundo respira, come, pensa e SENTE.

Acho que o combo básico é EMPATIA E RESPEITO! Se todes seguirem com essas duas prioridades em frente as atitudes, vamos evoluir muito e quem sabe um dia, vivenciaremos um mundo bem diferente do que vivemo hoje. O talento do artista está do lado de dentro e como ele é por fora, não vai influenciar nisso! Um beijo muito especial e obrigada mais uma vez pelo convite.

Pedro – Acredito que muitas vezes, o preconceito está muito mais com o produtor/contratante do que de fato com o público. Quem realmente gosta de música, está no evento pelo trabalho do artista e a vida pessoal de quem está se apresentando não faz diferença. Grande prova disso é Honey Dijon e BLOND:ISH, por exemplo, que lotam shows, como aconteceu no Time Warp aqui em São Paulo ano passado. Muitas pessoas que estavam ali, não tinham nem ideia de que se tratava de uma artista trans e uma artista lésbica.

Para termos outros artistas neste patamar, precisamos dar oportunidade a todos e nos ater apenas ao trabalho que cada um está fazendo, independente de raça, gênero ou orientação sexual. Afinal, estamos todos envolvidos nesta indústria por amor à música e ao público, além do mais, no ano em que estamos não há mais espaço para preconceito e segregação.

Etcetera na WareHOUSE

Pedro, que mensagem você pode deixar para nossa comunidade, principalmente para os artistas que buscam seu lugar ao sol?

Pedro – Para os artistas que estão começando, o recado que eu dou, por mais que seja um clichê é: não desistam! A verdade que ninguém conta é que não é fácil ser um DJ e viver apenas disso, precisa batalhar muito e buscar a sua maneira de se destacar dentre as centenas de profissionais que estão no mercado. É uma batalha dia após dia, mas ver o sorriso das pessoas na pista de dança não tem preço, vale cada esforço!

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